sábado, 1 de novembro de 2014

Ainda sobre o Amadora BD 2014


Do ponto de vista plástico e arquitectónico o Amadora BD deste ano está muito bom (embora fosse difícil superar o festival do ano passado). Mas algumas soluções simples – as paletes e a forma de fixar os painéis com cabos, p.ex. - são muito interessantess e, em especial o piso «nobre» está ao nível dos melhores.
Mas devo fazer algumas observações:
- O espaço da cave é um problema crónico. Creio que há sempre um investimento desproporcional no piso principal, tratando o piso inferior como suplementar. Mas o público (ou quase todo, e pelos menos os «turistas», penso eu) percorre todos os espaços, e este segundo piso parece estar sempre inacabado. Alguma coisa parece cronicamente falhar. Muito grande, ele acaba por deixar grandes vazios, o que é bastante desagradável. Seria de considerar futuramente a hipótese de cortar o espaço a meio.
- O Amadora BD 2014 dedicou uma atenção especial às figuras de Batman e Mafalda, que fazem, respectivamente, 75 anos e 50 anos.
Figuras bastante diferentes, eles mereceriam, por si só, um festival inteiro, e todo o tempo e espaço seriam insuficientes.
Eu não sei dos problemas logísticos, de direitos de autor, meios técnicos e de financiamento, que envolvem trazer pranchas para Portugal e construir salas à volta de um autor ou uma figura; mas qualquer destes «heróis» precisava de mais espaço e principalmente mais aternção.
Não preciso enfatizar que o Batman será porventura o super-herói que teve mais e melhores desenhadores e autores. Figura complexa, não se esgotaria num festival, mas duas salas são manifestamente insuficientes. De outra forma, uma sala e meia dúzia de pranchas para a Mafalda é pouco. Muito pouco.   



A pior banda do mundo (II)





Foi publicado o 2.º volume de A Pior Banda do Mundo de José Carlos Fernandes, reunião em capa dura das três histórias em falta: «A Grande Enciclopédia do Conhecimento Obsoleto», «O Depósito dos Refugos Postais e «Os Arquivos do Prodigioso e do Paranormal».
Remeto os meus leitores para o que aqui deixei escrito em Junho sobre o 1.º volume desta obra.
Talvez algum abuso da mesma lógica surreal, mas ainda assim imprescindível.

A Pior Banda do Mundo, José Carlos Fernandes, Devir, 2014

Amadora BD 25 anos!


A Amadora BD faz 25 anos. E parece que foi ontem!
Timidamente nomeado «Salão de Banda Desenhada da Amadora», o Primeiro Festival teve como espaço a Galeria Municipal da Câmara, cedo se mudando para a antiga fábrica da Sorefame, antes de adoptar finalmente o espaço que hoje ocupa, no Fórum Luís de Camões, na Brandoa.
Ao longo de um quarto de século o Amadora BD teve anos melhores e piores, atravessou
crises, mas ainda assim soube consagrar-se como o mais importante evento de banda desenhada nacional, e mesmo granjear uma respeitável reputação internacional.
O inestimável trabalho que o Amadora BD faz não se limita à exposição de pranchas, mas tem um papel educativo e divulgador – que não se confina aos quinze dias da exposição e ao espaço da Brandoa, mas ao longo do ano junto de escolas e jovens estudantes -, promovendo a BD e quebrando ideias erróneas sobre a menoridade ou marginalidade da BD: o Amadora BD é hoje um incontornável evento cultural nacional.
Como apreciador de banda desenhada desde a minha juventude, tenho acompanhado com entusiasmo o Amadora BD desde a primeira hora, e não quero deixar de lhe dar os parabéns pelo magnífico trabalho realizado ao longo de 25 anos.. 
Parabéns Amadora BD!

Julio Cortazar, Lester Young, «e não se atreviam a divertirem-se»


Por largas décadas a bibliografia traduzida em Portugal de Julio Cortázar resumia-se, creio, a três livros: «Histórias de cronópios e de famas» e «Todos os fogos o fogo», ambos edições dos anos 70 da Estampa, e «Bestiário» da Dom Quixote. Creio não estar enganado. Já nos anos 90 terão sido reeditados estes títulos, e a Dom Quixote publicou em formato de bolso, «Blow Up e outras histórias», tradução com título oportunista (provavelmente traduzida da versão inglesa com título oportunista) de «Las Armas Secretas», que haveria de ser republicado pela Cavalo de Ferro já este ano, respeitando o título original. Já aqui falei disso.
Enfim foi já neste milénio, creio, que foram finalmente editados o monumental «O Jogo do mundo (Rayuela)», «Final do Jogo», «Gostamos tanto da Glenda», «Papéis Inesperados» ou «A volta ao mundo em 80 dias». E continua por editar o grosso da produção literária do profícuo Cortázar, mais de quarenta títulos. Mas estamos melhor, pois estamos.
Depois de ter relido já este ano «As Armas Secretas», entusiasmei-me para «A volta ao dia em 80 mundos».
Embiquei logo na página 10, segunda página de texto: «… e não se atreviam a divertirem-se». Que raio!? Reli a frase. Extravagância de escritor? - A frase era repetida três linhas abaixo.
Desconfiado, prossegui a leitura com as «originalidades» a fazerem-me tropeçar a cada passo. Eu que tenho uma antiga aversão à gramática, encalhava nas vírgulas que não me deixavam respirar, numa pontuação que eu diria pelo menos questionável.
E pouco depois, a página 21: «Que sorte excepcional ser sul-americano … e não sentir-me obrigado a escrever a sério…».
Pois. Gralhas são gralhas, mas isto já não tinha nada cara de passaroco. Não sei de quem é o mal: se do tradutor, se do revisor, se da editora (se meu). Não será fácil traduzir um autor da estatura de Julio Cortázar, mas ele merecia mais respeito.

E aos tropeções vou lendo. Logo na primeira página Cortázar declara a sua inspiração em Lester Young; pois quem mais? Entre os cronópios, as famas e os demais fantasmas que assolam a sua escrita estão, para os jazzómanos, os mais queridos Clifford Brown – que página magnífica, dorida, bela -, Thelonious Monk, Jelly Roll Morton, Louis Armstrong, Charlie Parker; mas também, para todos, ao acaso, Mallarmé, Rimbaud, Max Ernst, Jorge Luis Borges, Keats, Lewis Carroll, Duchamp, Brecht, Dreyer, Alain Resnais, Chaplin e Keaton, Adorno, Gardel, Xenakis, Jean Dubuffet, Edvard Munch e Júlio Verne.
Será que no final Cortázar vai sobreviver à tradução desastrada?

A volta ao dia em 80 mundos, Julio Cortázar (1967), Cavalo de Ferro, 2010 (3.ª edição)  

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Só os amantes sobrevivem?






Só os amantes sobrevivem (Only Lovers Left Alive) é a história de dois vampiros, dois amantes, cujo amor sobreviveu ao tempo e à distância: ela, Eve (Tilda Swinton) e ele Adam (Tom Hiddleston) – significativamente o Adão e Eva de antes da memória.

Há várias coisas irresistíveis no filme de Jim Jarmusch, a começar pela banda sonora, magnífica, depois o tempo – leeeento -, em/com que o filme decorre, e as ambiências, entre o decadente e o fascinante pop culto
Eve vive em Tânger, cuja noite inquietante e sombria percorre para obter o sangue que um outro vampiro lhe fornece; enquanto Adam vive na arruinada Detroit, alimentando-se do sangue que obtém num hospital. Ambos vivem praticamente isolados num passado nem sempre consistente, apenas comunicando com um número restrito de personagens, que lhes fornece o acesso à cultura ou ao alimento.

Adam sente a sua solidão ameaçada pelos zombies e Eve parte para Detroit ao encontro do amante eterno. Os dias correm lânguidos na casa fascinantemente decadente – o passado, o antigo, onde a literatura de Shakespeare se cruza com a Motown-Stax soul music, a pop e os objectos retirados de um passado eterno. Adam acaricia uma Gibson de 1905 (as guitarras eléctricas só foram inventadas nos anos 30 e a Gibson só as começou a fabricar 20 anos mais tarde…), faz a música que outros se atribuíram e recita os poetas enquanto bebe sangue «puro» (em oposição ao sangue conspurcado dos zombies) em vasos de cristal e Eve lê os livros que transportou da enigmática Tânger.

Enfim, o quotidiano é perturbado pela aparição da irmã de Eve, que desencadeia a saída dos amantes, fazendo-os regressar a Tânger, onde a história de precipita. E enfim, observemos, não é por serem amantes, mas vampiros, que sobrevivem.

O fascinante de Só os amantes sobrevivem não é a história. Eu diria mesmo que o filme não precisava da história e o remate de Jarmusch quase o destrói. Se não fosse a imagem magnífica, os corpos, os actores, os amantes, os ambientes, os objectos, as referências, o tempo, a banda sonora fabulosa, Só os amantes sobrevivem seria um filme falhado. Mas claro, há a imagem magnífica, os corpos, os actores, os amantes, os ambientes, os objectos, as referências, o tempo e a banda sonora fabulosa…



(Há uma história desenhada pelo Carlos Barradas, publicada na revista Visão - gloriosa publicação de banda desenhada dos anos 70- intitulada «Viver não custa», creio, onde um vampiro se fazia atropelar para se submeter a uma transfusão de sangue – a história terminava com o vampiro a clamar «é preciso é saber viver». Lembrei-me da história quando estava a ver o Só os amantes sobrevivem de Jim Jarmusch. 

 Só os amantes sobrevivem (Only Lovers Left Alive), Jim Jarmusch, 2014

sábado, 28 de junho de 2014

But Beautiful






O Zé P. - nada como ter amigos - ligou-me uma destas noites: «Já viste o livro que saiu na Quetzal, But Beutiful
Não tinha. Fui a correr à livraria e lá estava ele: Mas é Bonito, um livro sobre jazz, improviso e domadores de feras; e na contracapa o prémio Somerset Maugham que encimava o encómio de Keith Jarrett: «O único livro sobre jazz que alguma vez recomendei aos meus amigos. Uma pequena jóia.».

A partir de fontes dispersas como as transcrições do tribunal militar que condenou Lester Young, artigos espalhados em revistas, episódios relatados por familiares, biografias, documentários, ou ainda peças musicais ou ensaios de vários autores, Geoff Dyer constrói oito episódios ficcionados sobre a vida ou momentos da vida de Lester Young, Thelonious Monk, Duke Ellington, Ben Webster, Chet Baker, Art Pepper, Bud Powell, Charles Mingus e Harry Carney, mas por ele perpassam toda uma série de nomes que são familiares aos amantes do Jazz.

Ao fim do segundo capítulo o livro já confirmou os louvores: ouvimos o saxofone preguiçoso de Young pelo meio das frases de Dyer, a forma como Ellington se inspirava ou como anotava as ideias nos guardanapos de restaurante parecem-nos óbvias, a esquizofrenia é a siamesa do génio de Monk.

«O Jazz», com que o relatório militar remata o diagnóstico de Lester Young, é a loucura e a droga e o estigma e a sua beleza, e a inspiração e o tema das histórias de Dyer, e a inspiração e o tema das suas improvisações literárias: diria que a escrita dramática e obscura de Julio Cortázar de O perseguidor (de que falo no post anterior) estão presentes neste livro. Dyer enuncia o tema, improvisa, regressa ao tema; a densidade da sua escrita inspira-se no mais genuíno do discurso de Charlie Parker ou de Lester Young.

But Beautiful.

Mas é Bonito, Geoff Dyer, Quetzal, 2014

As armas secretas






O perseguidor é uma das histórias de As armas secretas, reunião de cinco contos de Julio Cortázar.  
O perseguidor conta a história de Bruno, um jornalista e crítico de Jazz que se encontra com Johnny Carter, um saxofonista acossado pela droga. Bruno emaranha-se na vida – a loucura, o falecimento da filha, o saxofone perdido, o internamento, a família -,  na música, na instabilidade e no génio de Johnny, seguindo-o até ao fim.

É uma história angustiante, escrita na forma dramática, única, do grande escritor que é Julio Cortázar; e é a forma de Cortazar, um apaixonado pelo Jazz, homenagear Charlie Parker - é dele que se trata -, que tinha acabado de descobrir.

A história é um clássico da literatura, dir-se-ia mais uma peça do puzzle de Rayuela, a obra prima de Cortázar.

As outras histórias de As armas secretas são, além do conto que dá o nome ao livro, Cartas da mamã, Os bons serviços e As babas do diabo, que inspirou o filme de Antonioni, Blow Up.

Como escrevi noutro post, este livro foi editado há uns anos numa edição de bolso pela Europa América, com o título Blow Up e outras histórias. Mas até pela fidelidade aos títulos originais, As armas secretas da Cavalo de Ferro repõem a dignidade que faltava ao livro de Julio Cortázar.

Obrigatório!

As armas secretas, Julio Cortázar, Cavalo de Ferro, 2014

terça-feira, 24 de junho de 2014

Um tipo que gostava de Jazz



Terei conhecido o Miguel Gaspar num ciclo de conferências organizadas pelo Zé Duarte
na Fonoteca Municipal nos anos 90, onde também participei, e por essa altura ter-nos-emos cruzado no Diário de Notícias onde eu colaborava num cantinho com a minha crónica semanal de discos. Se bem me recordo, o tema da conferência do Miguel andava à volta da importância dos standards no Jazz. Depois disso o Miguel Gaspar voltou a ser convidado pelo Zé Duarte para colaborar n’O Papel do Jazz, onde escreveu sobre Paul Bley e New York e entrevistou Max Roach (com ZD).

Uns anitos mais tarde tive a lata e o gosto de lhe pedir - enquanto «director de redacção» - para escrever de borla (paguei-lhe com discos...) para a All Jazz. Pois fartou-se de escrever sobre uns discos do Charlie Haden, Abdullah Ibrahim, mais uns tantos da Jazz in Paris e ainda entrevistou a Jacinta. É possível que existam outros textos espalhados pelo DN ou pelo Público, mas é tudo quanto conheço escrito sobre Jazz do Miguel Gaspar.
O Miguel era um tipo culto, de um saber abrangente, mas não arrogante, trabalhador e profissional, o que lhe permitia escrever sobre quase tudo. 
Enfim, fomo-nos encontrando ao longo dos anos; ele era um tipo afável e falador. Da última vez, há três ou quatro meses, encontrámo-nos na rua; ele fazia a cobertura de uma greve. Falámos de trivialidades, dissemos mal da escória que nos governa; essas coisas.

Gostava de ler o Miguel Gaspar e de o ouvir falar. Com frequência não estava de acordo com ele, mas ainda assim o que ele dizia tinha quase sempre pertinência. Creio que ele era um dos tipos a quem se pode chamar com propriedade de jornalista. Haverá outros, conheço outros; mas o Miguel tinha a obsessão da imparcialidade. Tinha aquele jeito – e obsessão - de saber procurar a perspectiva, a outra perspectiva, que melhor permitisse compreender o acontecimento: porque é que alguém disse o quê, e quem é que afectou e como; mesmo para além da sua opinião. Uma ilusão, talvez, essa da isenção e da imparcialidade, mas eu creio que – eventualmente não a isenção, mas - a sua procura, estimulavam e determinavam a sua forma de fazer jornalismo.

Ainda estou em choque com o desaparecimento de Miguel Gaspar (54 anos!!), um dos nossos melhores jornalistas, subdirector do Público e, enfim, um tipo que gostava de Jazz.

À família e amigos, as minhas sinceras condolências.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

E a noite roda





E a noite roda é o diário da jornalista catalã Ana Blau.

O diário tem início em 2004: Ana Blau é enviada para a Palestina nas vésperas da morte de Yasser Arafat para fazer a cobertura da situação em Israel e Palestina. Aí conhece Leon, um jornalista belga por quem se apaixona, e as duas histórias cruzam-se e prolongam-se.

Com o conflito israelo-palestiniano em pano de fundo, Ana Blau salta de Jerusalém para Barcelona, para Ramallah ou para Paris, de novo para Jerusalém ou regressa à Catalunha. Pelo caminho conhece poetas e judeus ortodoxos, encontra-se com jornalistas e políticos, é assaltada, assiste à construção do muro que Israel levanta à volta dos territórios ocupados.

O jornalismo, a política e a paixão cruzam-se na primeira pessoa, e será difícil não identificar a jornalista Ana Blau com a jornalista Alexandra Lucas Coelho. Política e jornalismo, onde a jornalista procura equilibrar a observação com a independência possível de alguém que assiste no terreno à política de devastação que Israel provoca na Palestina, à agressão, à construção do novo «muro da vergonha», ao sufoco económico dos territórios ocupados, à metáfora viva da contenda entre o gigante Golias e o pequeno David. E também à luta fratricida entre as facções palestinianas, a corrupção, as pequenas misérias sociais.

E enfim a paixão dos dois amantes pelos olhos da mulher, a descrição crua do amor que os percorre entre as estradas de montanha da Catalunha e as camas dos hotéis para jornalistas de Jerusalém. Amor impossível, paixão que se expõe e se alimenta no sexo e da distância.

Não sou fã da escrita telegráfica e o livro da Alexandra Lucas Coelho começou por me aborrecer sobremaneira – confessarei mesmo que depois da décima página apenas prossegui a leitura devido ao prémio da APE.
Jerusalém. Amo-te. Sinto a falta do teu corpo. Ramallah. Enviei-te um email mas não me respondeste. Jerusalém. Acordei contigo a olhar para o meu corpo nu.: a minha caricatura nem sempre é assim tão distante e, sendo óbvio que a forma minimalista é intencional, ela pode tornar-se aborrecida.

A partir de certa altura o diário de Ana Blau ganha fôlego na exposição do amor carnal, muito próximo do mais lascivo de Anais Nin; pouco vulgar, chocante na escrita feminina (ai, ai, ai, os meus tiques machistas); e as últimas páginas, escritas em jeito de posfácio, deixam entrever literatura (ao nível da Alexandra Lucas Coelho).

O cruzamento das histórias, a vertigem e os acidentes do percurso da catalã, a paixão, as descrições epidérmicas da paixão e do sexo e do frenesim que consome os amantes, a política e o jornalismo, envolvem o leitor no romance, compensam a escrita enxuta (o enxuto da escrita) e justificam a forma diário. O minimalismo da escrita de Alexandra Lucas Coelho não me é simpático, mas ele é deliberado e eficaz.



e a noite roda, Alexandra Lucas Coelho, Tinta da China, re-2014

segunda-feira, 9 de junho de 2014

A Pior Banda do Mundo




A Devir acaba de reeditar os três primeiros números d’A Pior Banda do Mundo (O Quiosque
da Utopia, Museu Nacional do Acessório e do Irrelevante e As Ruínas de Babel.), reunidos num único volume de capa dura.

Obra incontornável da moderna banda desenhada portuguesa, tem como actores principais Sebastian Zorn (saxofone, líder da banda e serrilhador de selos), Idálio Alzheimer (teclas, verificador meteorológico), Ignacio Kagel (contrabaixo e fiscal municipal de isqueiros) e Analole Kopek (bateria e criptógrafo de segunda classe).

Os quatro músicos formam a pior banda de Jazz do mundo, que ensaia desde há três décadas na cave de uma alfaiataria encerrada, e que nunca foi contratada para tocar.  

Mas este é apenas o ponto de partida para uma viagem delirante onde personagens de profissões e actividades e situações estranhas como um compositor de música para telefone, Herman Zeitgeist, discípulo de Dimitri Sikorsky que dedicou toda a sua vida a compor uma música que já existe, Júlio Katchor, coleccionador de senhas de atendimento, o jornalista Evaristo Gulag que complementa o seu salário com a redacção de bilhetes de despedida para suicidas, Eduardo Kaspel, criador da Fundação para o Recuo da Ciência, Bernardo Zatopek, assessor do Ministro da Economia que descobriu que se toda a população activa dormisse em média 7 horas por dia em vez de 8, o produto interno bruto aumentaria 11%, Devries, a dona de casa que descobriu acidentalmente a lei que diz que «se por acidente se carregar simultaneamente em duas teclas da máquina de escrever, é sempre a letra que não se deseja que atinge o papel», etc. etc. etc.

Imaginação e criatividade esfusiante, absurdo e surrealismo, humor e delírio servidos por um excelente e original desenho: A Pior Banda do Mundo e José Carlos Fernandes (argumento e desenho) são a obra e o autor-desenhador nacionais mais premiados de sempre. Reedição obrigatória para quem falhou as edições originais (1998 – 2006) d'A Pior Banda do Mundo.

PS: Absurdo? Delírio? Alguém ouviu falar de um fiscal municipal de isqueiros? Ou de um primeiro-ministro que quer empobrecer os cidadãos e os aconselha a emigrar? Bah! Material para novos capítulos…

A Pior Banda do Mundo, José Carlos Fernandes, Devir, 2014

O Chico e a Beldroega



O anúncio de um fim de semana dedicado à beldroega (incluido no Ciclo Gastronómico «As Ervas da Baronia») promovido pela Câmara do Alvito, fez-me recordar outra das minhas grandes descobertas da gastronomia alentejana. Pois tal aconteceu há uns dez anos n’ O Chico de São Manços.   

Alguém me tinha falado d’O Chico e a curiosidade fez-me parar em São Manços numa tarde em que me dirigia para o Algarve.

São Manços é uma pequena localidade situada um pouco a Sul de Évora, mesmo ao lado da nacional 18, no sentido de Portel. Algures lá pelo meio fica O Chico (ou Xico, como está escrito no pára-sol), restaurante sem grandes características, e se não fosse a excelência da comidinha, nada me faria desviar do meu caminho.

Sala modesta pois, mas aconchegada. Assim que nos sentámos, vieram logo as entradinhas, a que é inútil resistir: favas guisadas com paio e toucinho frito, pezinhos de coentrada, iscas grelhadas com alho e azeite, queijos secos (de outras vezes orelha de porco em vinagre e coentros, grão com atum, alhada de cogumelos, polvo no azeite, painhos e chouriças e outras de ocasião).

A minha escolha recaiu nos pezinhos, cheirosos e suculentos, e verdadeiramente poderia ter ficado por aí. Mas tratava-se de uma entrada, um petisco, e petisco não é refeição (como diria o RAP).

Prosseguimos para as sopas, que lhes vínhamos recomendados. Três opções: a mais conhecida, a sopa de cação, a sopa de beldroegas e a sopa de cardos com bacalhau. Investimos na sopa de beldroegas.

Menosprezada na culinária, praga, a beldroega é uma erva suculenta que tem vindo a ganhar espaço nas prateleiras dos legumes e hortaliças dos supermercados, mas que faz parte da gastronomia do Alentejo desde sempre. O seu uso na culinária estender-se-á às Beiras e ao Algarve, e perdoem-me os transmontanos, minhotos ou estremenhos, mas não me recordo de aí ter alguma vez encontrado tal coisa. Em boa verdade, não me recordo de encontrar a sopa de beldroegas como iguaria fora dos menus dos restaurantes alentejanos.

Pois se eu já conhecia a sopa de beldroegas (como uma mais vulgar sopa de legumes), nada me fazia suspeitar o que encontrei na terrina que o Sr. Chico colocou na mesa: uma cabeça de alhos inteira, ovos escalfados e um queijo de ovelha! Comida de pobre, a erva daninha era o argumento para um festim de sabores!

Haveria de confirmar mais tarde: esta é uma das variantes da sopa, mas estes quatro ingredientes são quase sempre centrais na sopa, e uma delas inclui a posta de bacalhau. Mas aqui n’O Chico a sopa de beldroegas é a sopa de queijo e ovo, faltando apenas as inevitáveis fatias de pão velho de três dias - azedo, alentejano - no fundo do prato.

A refeição acabou quase aqui. O final estava reservado para umas fatias de queijo de cabra e um último copo de tinto. Mas a doçaria d’O Chico é também ela generosa, como é generosa a garrafeira.

Recordo que o preço da sopa rondou os 8€ e bastou para três comensais. Claro que com as entradas, o vinho e o queijinho final, a conta subiu.

A ementa d’O Chico não se fica pelas sopas: arroz de lebre, pato com arroz, ensopado de borrego, carne de alguidar, feijoada de caça, pezinhos de coentrada e grelhados vários justificam a deslocação.

Voltei ao Chico mais meia dúzia de vezes, onde repeti a sopa de beldroegas, experimentei uma gloriosa sopa de cardos com bacalhau, o ensopado e uns grelhados de porco, e também o fígado grelhado com azeite, alho e coentros, os cogumelos (a única entrada dispensável: os cogumelos, de lata, estavam cozidos e não sabiam a nada) e a salada de polvo - de truz - temperada com vinagre de vinho; que me recorde. Ficaram adiados os pratos de caça.

Os preços n’O Chico são razoáveis, mas é necessário ter cuidado: pode fazer-se uma boa refeição por 10€ ou passar facilmente para 25 se se atacar nas entradas e regar com um bom vinho. Mas como resistir à orelhita com coentros, ao fígado grelhado som azeite e alho ou ao queijo de cabra?

O Chico é um dos meus tascos de eleição, e a sopa de beldroegas a sua rainha.

 


O Chico, São Manços (Évora)
Ciclo "As Ervas da Baronia", Alvito, Vila Nova da Baronia